Números dão a dimensão de uma tragédia. O desta quarta-feira (24) é: o Brasil atingiu a marca de 250.036 mortos por Covid-19, em uma contabilidade crescente e assustadora.
Os dados são aferidos com as secretarias estaduais de Saúde pelo consórcio dos veículos de imprensa formado pela Folha de S.Paulo, UOL, O Estado de S. Paulo, Extra, O Globo e G1 para reunir e divulgar os números relativos à pandemia.
O número foi atingido às 18h03 deste dia 24, pouco mais de 24 horas antes de se completar 1 ano do registro oficial do primeiro caso no país, e ainda não incluía os dados de quatro estados.
Mas já era suficiente para afirmar que, em mortes diárias, o país vive agora o pior momento da pandemia. É como se toda a população de São José, cidade de Santa Catarina, tivesse desaparecido do mapa em menos de um ano.
Desde que foi declarada a pandemia de Covid-19, em 11 de março de 2020, boletins epidemiológicos têm mostrado com números o rastro de destruição deixado pela maior crise sanitária dos últimos cem anos.
Mas, por trás dos números, estão pessoas e suas famílias destroçadas pelo coronavírus, um impacto impossível de se medir por estatísticas numéricas. A reportagem ouviu essas famílias.
Os relatos trazem casos de tentativas de suicídio, sumiço de corpos, perda da única fonte de renda, e a dor de ver os familiares enterrados em valas comuns ou perdendo a vida, sozinhos, em UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) bem longe de casa.
Elaborar o luto nestas condições tem sido a tarefa mais penosa na vida de Adrianne, Natália, Luiz, Sarah e Deucimara. A reportagem tentou reunir mais relatos, mas muitas pessoas não quiseram falar por ainda não conseguirem reviver em palavras a dor que carregam.
A pedagoga Adrianne Medeiros, 35, aceitou falar de seu luto com a condição de não ter sua foto divulgada nesta reportagem. Ela diz que após dez meses da morte de seu marido, o supervisor de vendas Diogo Guimarães, 38, completados nesta terça-feira (23), é hora de se autopreservar.
Adrianne diz não saber quando terá sua vida de volta sobre os trilhos. Diz ainda dormir ao lado das roupas do marido e, quando sai de casa, borrifa o perfume que ele mais gostava sobre ela mesma “para continuar sentindo ele perto”.
Pela casa, os porta-retratos de Diogo continuam no mesmo lugar. “E sou criticada por isso. Há uma pressão das pessoas que estão me vendo de fora para eu voltar a namorar, a trabalhar, a viver. Mas gente: eu estou vivendo. Me deixem”, diz ela, em tom de desabafo.
A carioca vive com a filha, de 15 anos, na cidade do Rio de Janeiro e ainda não conseguiu entender porque Diogo não resistiu à doença justamente quando ele havia sido tirado de um respirador, aparelho que mantinha a respiração dele estável.
Era 23 de abril, dia de São Jorge, o santo de devoção de Adrianne. O combinado era levar Diogo para casa depois da melhora de seu estado de saúde. “Mas eu o levei falecido para o cemitério”, diz ela, que também contraiu a Covid ao ter contato com o marido, mas manifestou sintomas leves, apesar de asmática.
Adrianne conta que, um dia, perdeu o controle, teve um surto e tentou tirar a própria vida. Foi resgatada por uma prima que mora bem perto da casa dela. “Eu só me lembro dos bombeiros na minha casa”, diz.
Nesses dez meses sem Lord, apelido de Diogo, Adrianne vem fazendo de seu corpo uma plataforma para elaborar o luto. Já são 15 tatuagens. Uma delas está assim grafada: IgG19.
As letras são uma referência ao exame que detecta a produção de anticorpos para a Covid, representada pelo número 19 da tatuagem. Ela também criou um grupo de WhatsApp chamado “Guerreiras da Pandemia”, que reúne mais quatro amigas que perderam maridos ou irmãos para o coronavírus.
“Eu sei que o nome do grupo é ruim. Mas é o lugar que temos para xingar, chorar e expressar nossas oscilações de humor porque é assim: só quem perdeu alguém muito próximo para a Covid é capaz de entender o que eu estou sentindo”, diz.
De Fortaleza, no Ceará, a família de Sarah Pereira Lucas Melo, 20, não conseguiu nem enterrar o corpo de dona Raimunda de Paula Melo, 90, um caso envolto em desrespeito e má gestão da pandemia.
A idosa morreu no dia 13 de maio de 2020 após dar entrada no serviço de saúde do bairro Itaperi, e seu corpo desapareceu depois disso. A reportagem acompanha o desenrolar do caso desde setembro do ano passado.
“É como uma história com começo e sem final. Isso vai martirizando a gente de um jeito. É desumano, é criminoso”, diz a neta. Em maio do ano passado, o sistema de saúde de Fortaleza beirava o colapso pelo aumento súbito de casos e mortes muito aquém da capacidade da rede instalada de leitos para atender a doença.
O que a família de Raimunda aguarda é o cumprimento de uma ordem judicial para saber se os restos mortais da idosa estão enterrados numa das covas do cemitério Parque Bom Jardim, um dos espaços públicos para enterros mais demandados na pandemia, como suspeita a família.
O advogado Valdir Neto, que representa a família de Raimunda, informou que a exumação ainda não foi realizada e, que a demora, “é um sinal claro de desrespeito dos direitos humanos”, afirma.
“O que me deixa mais triste é que se a minha avó tivesse sido atendida com dignidade ela talvez pudesse estar aqui conosco e já imunizada”, afirma a neta.